Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro:
A Serviço da Memória Nacional

Elysio de Oliveira Belchior
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A Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro (ACARJ) é uma sociedade civil, sem fins lucrativos, fundada em 19 de dezembro de 1985, em reunião de cartofilistas na residência do Dr. Carlos Wehrs, na Rua Senador Vergueiro, 154, apto. 1203, no Rio de Janeiro (RJ). A ela estiveram presentes Carlos Wehrs, Carlos Werneck de Carvalho, Elysio de Oliveira Belchior, Hélio Roberto, Olínio Gomes Paschoal Coelho, Roberto Pedroso, Victorino Chermont de Miranda e Yolanda Roberto. Lavrada a ata de fundação, ficou a mesma aberta durante 30 dias para assinatura de todos os que quisessem participar da iniciativa, como sócios-fundadores. Na mesma ocasião constituiu-se a primeira Diretoria, encarregada de dar forma jurídica à novel associação, organizar e dirigi-la em seus primeiros anos.
Para traçar o perfil da Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro, frisando objetivos básicos e atuação, não basta dizer o que é a ACARJ nem aquilo que faz. É indispensável dizer porque o faz. O que implica em refletir sobre o cartão-postal e a importância de seu colecionismo, isto é, da Cartofilia.

O CARTÃO-POSTAL E A CARTOFILIA

O cartão-postal nasceu no último quartel do século XIX, tendo pois, mais de cem anos. Existem três versões sobre sua invenção, atribuindo-a:
1) ao cidadão norte-americano H. L. Lipman, que juntamente com J. P. Charlton, patenteou em 17 de dezembro de 1861, o chamado "Lipman's Postal Card". Todavia não se conhece exemplar deste cartão circulado antes do início da década seguinte;
2) ao diretor dos Correios da Confederação da Alemanha do Norte, Heinrich von Stephan, por ter lançado a ideia na Conferência Postal Germano-austríaca, em 1865;
3) a Emmanuel Hermann, professor em Neustadt, no Império Austro-húngaro, que, em 29 de janeiro de 1869 propôs sua adoção, da qual resultou a emissão do primeiro cartão-postal do mundo, circulado em 1° de outubro de 1869.

O Brasil instituiu o cartão-postal pelo Decreto n° 7695, de 28 de abril de 1880, proposto pelo Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, conselheiro Manuel Buarque de Macedo, integrante do gabinete que subiu ao poder em 28 de março de 1880. Disse o proponente em sua exposição de motivos a D. Pedro II:

"Segundo Vossa Majestade Imperial se dignará ver, a primeira de tais alterações é a que estabelece o uso dos bilhetes-postais geralmente admitidos nos outros Estados e ainda em França, onde aliás houve durante algum tempo certa repugnância ou hesitação em os receber; os bilhetes-postais são de intuitiva utilidade para a correspondência particular, e, longe de restringir o número de cartas, como poderá parecer, verifica-se, ao contrário que um dos seus efeitos é aumentá-lo." Na ocasião ocupava a Direção da Repartição dos Correios, Luís Plínio de Oliveka, nomeado para o cargo em 1865, depois de ter publicado três anos antes, o "Relatório sobre a Organização dos Correios da Inglaterra e França".

Primeiro cartão-postal emitido no mundo - coleção Elysio de Oliveira Belchior

A ideia do cartão-postal é bem simples. Um pequeno retângulo de papelão fino, destinado a circular pelo Correio sem envelope, tendo uma das faces destinada ao endereço do destinatário, na se qual encontrava impresso o selo postal, reservando-se a outra para mensagem. O porte do cartão inferior ao das cartas comuns e a dispensa do uso do envelope tornava a correspondência mais fácil e mais barata. O sucesso dos postais foi imediato.

Os primeiros cartões-postais emitidos (hoje conhecidos como inteiros-postais) constituíam monopólio oficial. Passados alguns anos, vários países em fins do século XIX começaram a autorizar as indústrias particulares a imprimirem alternativamente cartões-postais para circularem pêlos correios depois de apostos selos no valor do porte fixado. Esta modificação, na aparência pouco relevante para o postal considerado como forma de correspondência, representou estímulo significativo ao seu uso, pois na parte antes destinada à mensagem, começaram a ser impressas gravuras dos mais diferentes tipos. Para que a mensagem pudesse ser escrita, a gravura em geral não cobria toda a face que lhe era destinada, ocupando apenas parte, por vezes menos do que a metade. O apelo visual e a diversidade de gravuras em preto e branco ou a cores, despertou o interesse em guardar os cartões-postais que recordavam viagens, ou eram recebidos de amigos,
além daqueles obtidos por compra ou troca. Nascera o colecionismo.

O passo seguinte para popularizar o uso dos postais resultou da autorização legal para dividir a face destinada ao endereço em duas partes: uma a ele destinado, outra para a mensagem. Com isto as imagens ganharam mais espaço para impressão.

Curiosamente, hoje em dia, há mais de um século do nascimento do cartão, vez por outra ainda se indaga: o que é um cartão-postal? A pergunta em geral decorre do fato de que muitas pessoas (até mesmo colecionadores) julgam que qualquer cartão ilustrado, com dimensões semelhantes às dos postais, e eventualmente circulado pêlos Correios, é cartão-postal.

A dúvida também existe em outros países, haja vista que J. R. Burdick, em seu livro Pioneer Postcards (p. 9/10), procura, com todo acerto, respondê-la: "Deve ser lembrado de que é sempre possível enviar qualquer peça de papelão através dos Correios. Tudo o que é necessário é endereçar e colocar os selos exigidos pelo governo [...] Existem muitos exemplos conhecidos de antigos álbuns contendo cartões de propaganda ou de cumprimentos assim circulados, embora tais cartões não fossem destinados a ser remetidos pêlos Correios. Tal circulação não lhes dá o "status" de cartão-postal, uma vez que permanecem apenas como peça de mercadoria (cartão ilustrado) que foi endereçado e postado. O critério não é que um cartão tenha sido enviado pelo correio, mas que o cartão tenha sido feito com a intenção de ser usado, em si mesmo, como mensagem postada no correio ou como lembrança [...] Assim elimina-se da coleção de cartões-postais os milhões de cartões de propaganda, cartões de álbuns ou ilustrados, e outras novidades que não tenham indicações de que originalmente foram feitos com a intenção de utilização postal". Vale acentuar, todavia, que um cartão contendo reprodução de fotografia ou qualquer outra ilustração, sem a indicação de que foi feito para circular pelo correio sem envelope, e que portanto não possa ser considerado cartão-postal para efeitos de Cartofilia, não perde o valor. Colecionadores de outra grei podem dispensar-lhe particular interesse, e atribuir-lhe até, conforme o caso, valor (preço) superior ao do cartão-postal.
Depois que os cartões-postais passaram a interessar à indústria particular, multiplicaram-se os editores em todos os países, e com eles o registro dos diferentes aspectos da presença coeva ou pretérita do Homem no mundo e do vasto ambiente geográfico em que vive. Para compreender esta multiplicidade de olhares sobre o ambiente natural e social, sobre a vida quotidiana, deve atentar-se para a inexistência na época de modernos meios de rápida transmissão à distância, como o rádiofoto, televisão, fax, internet, etc. O cartão-postal, como vetor de imagens, supria através do mundo a falta desses meios de divulgação. Os editores de postais porfiavam em registrar o mais rápido possível eventos do dia-a-dia. Em 3 de julho de 1906 incendiou-se a Igreja de S. Miguel, na cidade de Hamburgo, três dias depois um correspondente enviou ao amigo no Brasil cartão-postal com a fotografia do sinistro. A mensagem de outro cartão, com detalhes de uma catástrofe marítima, datado de 20 de abril de 1912, diz: "envio-te este postal do lindo Titanic, naufragado a (sic) quatro dias...". Mais rápido ainda, um postal despachado para o Brasil, de Berlim, em 1913. exibe a foto do desastre do dirigível alemão L. H, "ocorrido ontem".

"As edições sucediam-se fascinando milhares de pessoas que, de repente, - diz Victorino Chermont de Miranda (A memória paraense no cartão-postal, p. 14) - como que se transportavam para latitudes nunca dantes suspeitadas, descobrindo novos horizontes e costumes, na fraternidade daquele "hobby" que, de certa forma, antecipou para os nossos pais e avós a ideia da aldeia global, que os meios de comunicação viriam a consolidar em nossos dias, tornando-nos próximos e presentes dos grandes lances e tragédias de todo o mundo".

Uma coleção de cartões-postais oferece ao colecionador atento à riqueza das imagens neles eternizadas verdadeira "enciclopédia pela imagem".
Com o fim da Idade de Ouro, os postais e suas coleções foram sendo abandonados, e muitas vezes destruídos ou entregues aos azares do tempo. Pior, ficou esquecido o tesouro de informações que neles existia e que o tempo destruía, mas também o valorizava como documentação iconográfica da maior significação. Porque, na verdade, "seus editores não se limitaram a registrar temas condizentes com os sentimentos socialmente aceitos na época, abandonando os que revelavam a pluralidade de pontos de vista ou transgrediam as normas éticas; nem sempre preferiram o nobre e o grande, desprezando o insignificante ou atípico. Do contrário os cartões não teriam o apelo que surge, principalmente do que eles exibem da simultaneidade dos contrastes. A concepção, que em nossos dias frequenta a "mídia", do cartão como divulgador apenas da beleza panorâmica, a ponto de certas paisagens de cidades e regiões serem conhecidas como o "seu cartão-postal", impede tenha-se ideia das dimensões que este meio de divulgação de imagens atingiu durante a sua Idade de Ouro. [...} Entesourasse o postal apenas o permanente, o natural ou construído pelo homem, e não o transitório dos acontecimentos e do progresso, e jamais seria descoberto o sentido que o transformou em
objeto de colecionismo através dos tempos, [...] A extrema variedade das ilustrações dos postais, tornou-os verdadeiros documentos dos quais podem valer-se historiadores, antropólogos, artistas, para conhecimento dos tempos pretéritos. {...] Quando se percebe que os postais conservam instantes de trajetórias humanas, quando se reflexiona sobre a riqueza de formas e sugestões que neles se condensa e irradia, compreende-se que proporcionam uma visão humantstica do Mundo em que vivemos, pois cada imagem traduz um ato de escolha, demonstra preferência, privilegia aspecto da vida dentro de perspectivas sociais vigentes, ensaia uma interpretação da realidade" (Elysio de Oliveira Belchior, Temática em Cartofilia Clássica, Boletim da Sociedade Brasileira de Cartofilia, n° 06, jul/dez. 1988).

Primeiro cartão-postal brasileiro - coleção Elysio de Oliveira Belchior


Monsenhor Jamil Nassif Abib, na apresentação da exposição "A vitrine do imaginário" (1991), afirmou com muita propriedade, que "na multiplicidade dos temas, os cartões vão representando o raro, o trivial, o pitoresco, o folclórico, o bizarro, a respeito de tudo - e, com isso - abrem portas e desafiam o tempo e a imaginação dos colecionadores. O cartão-postal é o reflexo da realidade, a vitrine do imaginário, a resposta ao desejo de contato ou de conservar o traço de uma lembrança. Ele tem a força de abolir distâncias e restituir identidades (quase) perdidas".
Cartofilia, é como António Miranda a define, "o colecionamento de cartões-postais", acrescentando mais que "hoje pode ser considerada uma arte, pretende ser uma ciência, mas deve continuar sendo uma fonte de prazer e entretenimento cultural". J. e G. Neudin em seu conhecido Catálogo (ed. 1982), acrescentam o aspecto psicológico da cartofilia e a definem como "a paixão pelo cartão-postal", paixão que se encontra implícita em qualquer forma de colecionismo não direcionada para o investimento ou a especulação. A paixão por si só, levaria apenas à simples acumulação do objeto colecionado. O colecionismo - vale dizer a Cartofilia - deve ultrapassar o prazer da posse, que nela se esgotaria, se não motivasse à busca do sentido de tudo quanto é coletado. Colecionar cartões-postais é estimá-los, sem dúvida, mas é também situá-lo no seu momento histórico, é compreendê-los, é preservá-los como memória dos tempos e dos homens; é privilegiar seu conteúdo cultural; é assumir um compromisso tácito com o futuro.
No Rio de Janeiro, passada a fase áurea do início do século XX, a Cartofilia entrou em declínio e como que desapareceu, vegetando apenas graças à compreensão de poucos colecionadores isolados. A renascença da Cartofilia ocorreu na década dos anos setenta do século passado, para o que muito contribuiu o funcionamento da Feira de Antiquários, na Praça Marechal Âncora, onde os colecionadores se conheciam e reuniam ao redor do "stand" de Yolanda Roberto.

ATIVIDADES DA ACARJ

As atividades da ACARJ desenvolvem-se em torno de alguns princípios básicos, entre eles:
1) estímulo ao colecionismo do cartão-postal, como fonte de cultura e de entretenimento;
2) reconhecimento e divulgação do cartão postal como documento integrante da Memória Nacional;
3) necessidade da preservação dos acervos existentes;
4) conscientização da importância das imagens e mensagens contidas;
5) as nos cartões-postais como fonte de estudos do passado e do presente remetido ao futuro;
6) apoio a iniciativas particulares que se coadunem com seus princípios e objetivos.
Uma reflexão sobre a atuação da ACARJ nos revela aspectos altamente positivos, em termos de consolidação da Cartofilia no Rio de Janeiro, mostrando que a Entidade conseguiu atingir os objetivos a que se propôs. Os colecionadores já são procurados por entidade culturais e pesquisadores, no sentido de permitirem sejam os acervos de cartões-postais utilizados como fonte iconográfica para livros e artigos em revistas. Teses e dissertações de cursos de pós-graduação possuem como temas os cartões-postais em diferentes aspectos. Museus e bibliotecas, procuram aumentar os acervos de postais, valorizar os que possuem, organizando e colocando-os a disposição dos consulentes.
Neste sentido vale salientar que o I Colóquio dos Institutos Históricos Brasileiros, promovido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, realizado no Rio de Janeiro, em outubro de 1998, aprovou moção em que "reconhece a significação do cartão-postal como documento iconogrâfico importante para o conhecimento da história das cidades brasileiras e registro de seu cotidiano, recomendando aos Institutos participantes que abram espaço em seus acervos para tais coleções".
Recorde-se que os cartões-postais antigos têm servido para projetos de restauração de sítios históricos urbanos, como em nossos dias ocorreu com a Quinta da Boa Vista e a Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro.

UTILIDADE PÚBLICA MUNICIPAL

O reconhecimento oficial da atuação da ACARJ veio com a Lei n° 2054, de 8 de dezembro de 1993, sancionada pelo prefeito César Maia, considerando a Associação de Cartofilia do Rio de Janeiro de utilidade pública municipal, em decorrência do projeto de lei 257/93, apresentado pelo vereador António Pitanga, na Câmara Municipal. Na exposição de motivos com que justificou o projeto, declarou que "ciente da importância do cartão-postal como uma das mais interessantes e valiosas fonte documentais da história, a entidade assume o papel de articuladora dos diversos acervos onde, entre vários temas, figura toda a história da nossa cidade deste o advento da fotografia, na segunda metade do século passado, possibilitando o acesso de milhares de pessoas ao registro imagístico de nossa arquitetura, da evolução urbana de nossa cidade, do desenvolvimento da mais variadas instituições e práticas (como escolas, religiões, práticas esportivas etc.) e diversos outros costumes, características e peculiaridades culturais. Por todos estes motivos, a concessão do Título de Utilidade Pública à ACARJ significa muito mais que o reconhecimento de sua importância pública e social para a cidade e o País. Significa o reconhecimento de que os direitos públicos constituem-se para muito além do suprimento das necessidades básicas, do direito de acesso aos mais diversos bens culturais e de participação ativa e consciente na produção e fruição da memória social".

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[ACARJ]